Novidade

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domingo, 22 de março de 2015

O rabisco

O papel está em branco, e eu não quero escrever nada nele. Talvez rabisque, risque com toda a força, solte minhas emoções e meus sentimentos em um pedaço pequeno de papel, fino e sensível, de uma maneira que nem eu consiga entender, que ninguém consiga entender. E que ninguém queira.
Em abstrações se resumem meus dias, o rabisco no papel é meu final de semana eterno, meu despertador me chamando, o sol que tenta aparecer, o frio que tenta pedir afago. O meu caminho são os traços curvos que faço, meu destino são as voltas sinuosas no papel, mas que não querem dizer nada. Está tudo tão cheio, mas tão vago.
No vagão do trem eu tento me distanciar um pouco. Vendo a cidade pela janela riscada com suas marcas, vejo o papel que está na minha frente, meu cabelo que não me ajuda nas manhãs cansadas, minha barba que finge estar presente, na minha camiseta amassada e no meu tênis mal conservado. Talvez tenha um sorriso no meu rabisco, mas não tem vozes. Talvez tenha uma silhueta no meu desenho, mas não tem sorrisos. E nesse quiasma reflexivo, talvez não tenha nada. É só um desenho, é só uma vida, é só uma memória.
A noite passa e eu tento melhorar a minha tentativa de escrita transformada em abstração. Parece que não tem nada escrito no papel, mas no próprio papel em branco tenha um sentimento. Se eu tivesse feito a lápis pudesse refazer meu trajeto, mas a vida é caneta e só aceita alguns poucos ajustes, que podem até reforçar o erro.
Desculpem-me por não ter conseguido dizer nada, penso em muito e não sei por onde começar. Talvez tente colorir o desenho, para tentar dar ao olhar do espectador da minha vida um tom mais plural, menos monocromático, é um rabisco tão complexo que merece tons suaves de cor, mas que não serão nada, muito menos a representação desse nada.
É só um desenho.
É só uma tentativa de um autorretrato.
É só uma tentativa.
Só é.
E mais nada.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Um instante no incômodo

O ventilador está ligado
E a luz começa a falhar.
Eu, aqui, sentado nesse cômodo do mundo,
Vejo os carros e as pessoas e o tempo passando
Nas ruas da cidade eterna, sem pensar.
Contemplando na monotonia dos movimentos do ventilador
O barulho da vida, sigo a observar
A pouca poeira do chão,
O livro na estante,
As poucas estrelas no céu da cidade,
A esperança na cabeceira da minha cama
Me esperando para uma noite de sonhos,
Tudo numa singela calma.
O telefone não toca,
O violão não toca,
O amor não toca,
A eternidade parou para pensar
Em por que ser eterna
E o vazio desistiu de ser tão completo.
E eu aqui, agora deitado,
Observo na minha frente toda essa complitude:
Já está frio e escuro,
E tudo o que eu tenho, na minha falta de pensamento,
É meu quarto mal arrumado,
Meu sonho mal conservado,
E o ruído vasto do mundo.

Dificuldades

É muito dificil para quem acabou de nascer entender o mundo
É muito difícil para quem acabou de crescer entender a realidade
É muito difícil para quem acabou de sofrer entender o outro lado
É muito difícil para quem acabou de amar entender a saudade

É muito difícil para quem acabou de se estressar entender a simplicidade
É muito difícil para quem acabou de se acalmar entender a agitação
É muito difícil para quem acabou de chorar entender o destino
É muito difícil para quem acabou de sorrir entender o não

É muito difícil para quem acabou de ganhar entender a real intenção
É muito difícil para quem acabou de perder entender a sorte
É muito difícil para quem acabou de sonhar entender a verdade
É muito difícil para quem acabou de viver entender a morte

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Quando acabarem os talheres

Quando acabarem os talheres do mundo
E só restarem as mãos,
Desejem sorte aos cavalheiros e às donzelas:
O jantar será brutal,
As etiquetas das camisetas finas sumirão,
As coroas serão migalhas,

E os pratos finos serão meio pedaço de pão.

Não haverá a dança de garfos e facas e colheres e afins,

Não haverá pessoas neuróticas trocando de talher
Para que combine com o outro em mãos,
Não haverá baterias improvisadas,
Não haverá civilização.


Esqueçam o conhecimento,
Esqueçam os problemas da vida,

Esqueçam os tridentes, o fogo, a forca:
Ignorem qualquer e todo tipo de revolução.
Se importem com o caos durante o almoço,
Um momento considerado o mais precioso,
Sem nenhum apetrecho útil nas mãos,
Sem nenhum talher para te salvar
Da animalesca degradação.

Pensar em um retrocesso do mundo alimentar

É pensar em um retrocesso como ser humano.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Piquenique

Enquanto as pombas não vierem
Para buscar o nosso pão,
Partilhai, irmãos, e comei:
Alimentemos-nos de emoção.

Vamos andar pela vizinhança
Pegando as migalhas das construções
Fazendo patê com nossos amores
E servindo em pratos de corações.

Escolhamos o melhor lugar
Para o pano quadriculado,
Para a poeira, a folha de louro,
A cesta, o bolo molhado,

E fiquemos à toa comendo,
Dizendo algumas palavras tácitas,
Contemplando o fim do mundo,
Ouvindo belas sonatas clássicas.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Quando a poesia morreu

Quando a poesia morreu,
O mundo ficou um lugar melhor:
Com os poetas dormindo em suas casas,
Reclusos, cansados, entediados,
Engordaram e viram a chatice da raça humana,
Ouvindo o chiado da televisão e do rádio,
Coçando a frieira e o vira-lata que adotaram
Pra tentar "curar" a solidão.

Não houve trânsito, não houve tumulto,
O trabalho foi feliz, não houve trabalho,
Lojas estavam abertas 24h e com promoção:
"Não passe no caixa, vá direto para a saída,
Vá embora".

A natureza renasceu, acabaram os problemas ambientais,
O mundo virou a utopia de mundo.
Uma pena que nenhum homem aproveitou
O fim da poesia:
Somos todos poetas.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Uma festa perdida no tempo

Foi num sábado suave de outono. Era noite, a lua estava cheia de si, com o ego sendo acariciado pelos comentários e olhares, mas logo com ciúmes do salão, das vestimentas, do tapete vermelho. Ah, que tapete! Esfolado, mas vermelho. Velho, mas vermelho. Resplandecia um tom rubro vivo, fino, mesmo que fora de seu tempo. E logo passavam por ele os convidados, em seus trajes, suas saias com babados e finos detalhes, suas casacas, seus fraques, seus smokings. Era a passeata de patos, pinguins, coelhos e baleias pelo tapete vermelho, que levava ao salão, que podia não ser o de Versalhes, mas servia muito bem para a ocasião. Na porta estava o anfitrião, esbanjando sua virtude, sua barriga, em sua tentativa de fazer um baile de máscaras francês do século XIX no Brasil do século XXI, com uma verossimilhança insana e surreal. Eu nunca fui em bailes do século XIX, mas ele teve muito trabalho para tentar fazer algo parecido com um.

Fui o penúltimo a chegar, com um paletó surrado, uma camisa furada na axila e um sapato sem brilho, dois calos e uma bolha no pé,mas com um ar sutil de nobre (que só tem o título de). Fui recepcionado de maneira igual ao outros, com o mesmo olhar de raio x que analisa até se o botão da camisa combina com a gravata (e não combinavam), mas com uma cara de reprovação e de "eu te chamei realmente pra MINHA festa?". Fui convidado a entrar e dançar. Com uma coletânea aleatória de valsas e músicas eruditas, o conjunto de seis músicos - dois violinistas, um pianista, dois violoncelistas e um flautista - sentiam a falta de um regente e de um tímpano (no conjunto e no corpo) e perdiam o tempo quase sempre, até porque algumas vezes eles, como o resto da festa, ameaçavam um cochilo oportuno. Com quitutes finos e não muito apetitosos, e com vinhos e champanhes caríssimos e sem graças a festa seguia, com conversas aleatórias, uns pedantismos, um Rousseau, um Maquiavel, abóboras, pepinos e abacaxis. As pessoas se sentiam realmente nos tempos da realeza, soltavam até umas expressões em um francês ibericamente torto, entraram em seus personagens, em suas máscaras, sem tecnologias, sem nada, pelo menos nas horas que não eram oportunas - o anfitrião reclamava -, se sentindo acomodadas no calor do salão e da noite tropical.

A festa parecia correr monótona, até quando, com uma taça quebrada, foi anunciada a valsa. E, como num baile de debutante ou numa formatura de colégio, as pessoas começaram a dançar, ao som do belo Danúbio Azul. E só pela música já estava feliz, quase chorando pelo prazer de ouvir a valsa, mesmo que torta, que me acompanha nos momentos de felicidade/insanidade. Foi quando alguém me chamou para dançar, já meio embriagado, e fui. A companheira de valsa sabia o que fazia, em seus passos, sua postura, seu vestido, seu cheiro de donzela. Parecia realmente que ela era de dois séculos atrás e apareceu só para me fazer sentir fora do meu tempo. Vi princesas, vi cavalos, vi o passado, só não vi seu rosto. Uma pena. Não vi mais ela e ninguém a conhecia (grande clichê de um baile de máscaras). Depois de finda a dança, passou um tempo e eu saí da festa, o segundo a se despedir, sendo ajudado por Dionîsio para não cair e não dormir, embriagado de vinho (não existi no dia seguinte). Saí do salão, dei um tapa na cara, voltei ao século XXI, peguei meu celular e chamei um táxi. Vi que o sol ia demorar um pouco para acordar e que as Cinderelas já tinham virado abóboras, e ,quando ia esquecer tudo de vez, vi um relógio de bolso no paletó, talvez uma lembrança que o anfitrião quis dar (como em festa de criança), talvez um presente da viajante do tempo durante a hora da valsa, que tenha passado despercebido, não sei bem. Minha reação ao vê-lo foi rir (por falta de opção). Era bonito, folheado a ouro, com a hora travada em 4:19. Eu não sei mexer nessas coisas antigas, tenho medo de quebrá-las, mas que seja, ficou parado no tempo, como deveria - provavelmente esteja quebrado, mas nem vale a pena arrumá-lo - . Foi uma festa e uma experiência interessante e surreal, mas voltar no tempo é uma coisa que acho que não faz o meu estilo, é confuso e pode causar sérios danos físicos e mentais. Não recomendo muito, seja qual for o meio de transporte transtemporal.